terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

A inveja, segundo Rubem Alves


Gosto de tomates. Resolvi plantar uns tomateiros lá em Pocinhas do Rio Verde (MG). Amadureceu o primeiro tomate, todo vermelho, com exceção de um pontinho preto na casca. Nem liguei para o ponto preto. Colhi o tomate e me preparei para comê-lo. Dei a primeira dentada e cuspi. O que havia dentro dele era um verme branco, grande, enrugado, gordo por haver comido toda a polpa do tomate.
Foi essa a imagem que me veio à memória quando me preparava para falar sobre o mais terrível de todos os demônios. Ninguém suspeita. Ele vai comendo por dentro as coisas boas que crescem no nosso quintal. Eu sempre digo: demônios fazem ninhos no corpo. Cada um tem sua preferência. Neste caso a que me refiro, o demônio faz seu ninho nos olhos. E ele não gosta de coisas ruins e feias. Como o verme, ele prefere os tomates. Gosta de coisas bonitas. E o resultado é que, quando uma coisa bonita que cresce no nosso quintal (note bem: o demônio só faz sua obra no nosso quintal) é tocada pelo olho onde mora o verme ela imediatamente murcha, apodrece, cai. E aí vêm as moscas.
O demônio que se aloja nos olhos se chama inveja. Inveja vem do latim invidere que, segundo o dicionário Webster, quer dizer “olhar pelos cantos dos olhos”. Inveja não olha de frente. Quem olha de frente tem prazer no que vê. Quem olha de lado olha com olho mau.
Olho mau, olho gordo: muita gente tem medo desse olhar. Não precisa. O verme da inveja nunca faz nada com os tomates da horta alheia. Ele só come os tomates da horta da gente.
Explico. Fernando Pessoa diz que a inveja “dá movimento aos olhos”. Olho de inveja não olha numa direção só. Lembre-se do que eu disse: que o olho onde se aninha o verme da inveja só gosta de ver coisas bonitas. Então é assim que acontece. Eu tenho um belo tomate crescendo no meu quintal. É certo que não há vermes dentro dele. Vai dar uma deliciosa salada. Mas antes, vou mostrar o meu tomate para meu vizinho… Um pouco de exibicionismo faz bem para o ego. Mas aí eu olho para o quintal do vizinho. Ele também cultiva tomates. Vejo o tomate que cresce no tomateiro dele. Lindo! Vermelhíssimo, mais bonito que o meu. É nesta hora que o verme entra no meu olho. Meus olhos se movimentam. Voltam-se para o meu tomate que era minha alegria e orgulho. Já não é mais. Vejo-o agora mirrado, pequeno murcho. E ele corresponde: apodrece repentinamente e cai… Perdi o prazer da minha salada.
Esse movimento dos olhos é a maldição da comparação. Quando eu comparo o meu ‘bom-bom-mesmo-mais-que-suficiente-para-me-fazer-feliz” com o “bom” maior do outro, fico infeliz. E o que antes me dava felicidade passa a me dar infelicidade. Com a comparação tem início a infelicidade humana. Isso acontece com tudo. Comparo minha casa, meu carro, minhas roupas, meu corpo, minha inteligência e até mesmo meu filho.
Frequentemente os filhos são vítimas no jogo de inveja dos seus pais. Aquele meu filho, que é a minha alegria, delícia de criança, com um jeitinho só dele e que me encanta… Mas o filho do vizinho tira notas mais altas que o meu, é campeão de natação, é mais forte, mais alto e não é gordinho… Então, meu olho se movimenta e o verme se aninha. E se dá o mesmo com meu tomate: apodrece.

Texto extraído da Revista Psique, maio de 2009.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

ANSIEDADE, PARA!




Ansiedade, levanta desse sofá.
Larga esse quadro,
sai da minha cozinha!
Fecha a torneira!
Você sabe que os pingos que caem
me fazem contar
as horas que eu perdi me preocupando
com você.
Não suja o chão,
para de derrubar as coisas!
Deixa minhas revistas no lugar,
para de fazer eu me sentir perdido
no meu próprio lar!
Solta o controle da TV,
para de mudar de canal!
Para de entrar na minha cabeça
e fazer com que eu me sinta mal!
Ansiedade não pega isso, vai quebrar!
Coloca isso no lugar!
Ansiedade,
acho que sou eu
quem vai quebrar.
Despedaçar.
Ansiedade, vai embora,
coloca minha vida de volta no lugar.
Devolve o meu casaco!
Coloca tudo onde você pegou!
Devolve todas as pessoas
as quais você afastou de mim!
Onde você escondeu minha chaves?
Ansiedade, para de fazer eu me sentir preso!
Por que você é assim?!
E as chaves do carro, onde você pôs?
Me deixa sair, ansiedade!
Me deixa ver as pessoas que eu amo!
Ansiedade, levanta do sofá!!
Sai da minha cama!
Levanta de cima de mim!
Ansiedade me deixa sentir vontade de acordar!
Desliga esse computador,
e não deixa a geladeira aberta!
Para de bagunçar o que não é seu!
Ansiedade! Para de jogar minhas meias no chão!
Onde você escondeu o par do meu sapato?
Onde foi que você meteu?
Ansiedade!
Ansiedade!
Que inferno!
Não joga bola aqui dentro!
Da onde cê tirou essa bola?
Eu nunca comprei uma bola...
Cuidado com a janela!!
Você queimou a lâmpada!
Ansiedade
você é teimosa,
travessa feito uma criança.
E eu sou um fracasso como pai
pra te cuidar.
Sei que você nunca vai sumir,
nós dois vamos ter
que nos acostumar.
Crescer,
se entender.
Um dia você vai amadurecer.
Um dia eu vou amadurecer.
Eu não pedi pra você morar na minha vida,
e sei que você não pediu pra aparecer,
mas o destino jogou assim
e eu preciso entender...
Ei!
Ei! Desce da mesa!
ANSIEDADE VOCÊ VAI QUEBRAR TUDO POR AQUI!
ANSIEDADE!
PARA!

João Doederlain

DESEJO DE INFINITO


Desejo a mim mesma a minha dor, entendendo que ela é, só minha e que saberei, sempre, atravessá-la respeitando seu compasso, respeitando minhas lágrimas. Negar a dor não a faz desaparecer. Saber um outro lugar onde colocá-la, pensar na possibilidade de reinventar essa dor e atravessá-la sem jogar "o sujo embaixo do tapete." nem tampouco tamponar um vazio que precisa ser refletido e elaborado... Quem sabe assim posso dar lugar para as alegrias? Quem sabe meu coração venha palpitar nos olhos?

Que eu não tenha medo do silêncio e possa me afastar da vida ruidosa. Ficar descolada da superfície das coisas, da pressa dos gestos,da avidez do descartável e do barulho das relações pautadas na aparência. Espero merecer um tempo de profundidades.

Desejo a contenção em vez de esbanjamento, algo como trocar a qualidade pela quantidade, substituir o voo rasteiro pelo sobrevoo dos abismos. Quero um tempo em que eu possa cair em área sagrada, como diria Clarice Lispector. Tempo de felicidade, mas não precisa ser a qualquer custo nem o tempo todo. Bastam-me os dias em que eu não viole as coisas nem coisifique as pessoas, mas antes possa abrangê-los com um olhar complacente. Afinal, como sugere Guimarães Rosa: "Alegre era a gente viver devagarinho, miudinho, não se importando demais com coisa nenhuma. Felicidade se acha é só em horinhas de descuido."

Quero a sutileza dos aprendizados que não cessam com o passar do tempo. Aprender a cadência dos afetos, a voejar sobre o precipício, a surpreender-me com o aparentemente banal

E se por acaso eu chorar nas madrugadas, quero a certeza de que as lágrimas me darão uma inefável sabedoria.

Descobrir-me e saber continuar-me, eis o que quero.

Um outono dentro de mim e horas que me permitam o olhar apurando os tantos horizontes, numa jornada em que possamos cuidar de nós mesmos e uns dos outros longe das defesas maiores.

Tecer um ninho e saber fazê-lo universal.

Desejo, se a vida me despedaçar, ter sabedoria para respeitá-la com uma profunda serenidade e sem perder as cores das minhas tintas.

Desejo muitos sóis, daqueles que docemente é possível sentir pela luz maior. Mas não pretendo negar a chuva nem olvidar os sentidos da escuridão.

Suportar, se necessário for, a falta dos meus amados; saber da saudade e renascer, triunfante, na lembrança imorredoura daquele tempo em que aprendi a caminhar sobre a linha ébria da vida.

Leda Almeida Guerra,
Livro Aquém Sol, Além-Mar, páginas; 52,53
Editora Bagaço